A liberdade na arte das pequenas coisas (Diário da quarentena - 5)

Para deixar bem claro, caso fique confuso (o que é normal, a vida é confusa), o assunto deste texto é viver, viver bem e feliz, é sobre diminuir para dar conta, sobre experimentar a vida, e sobre o que é a verdadeira liberdade. 


[Fotografia Contemplativa, São Paulo, 2018]

Não quero aqui dar lição de vida, longe disso, quero apenas refletir com vocês. Em tempos de pandemia, ao ter que ficar em casa, somos obrigados a viver as coisas simples, e vejo uma oportunidade de pensar sobre tudo isso, pequenas coisas, gestos menores, contemplar.

O gesto menor

Recentemente li “Proposições para um movimento menor.” de Erin Manning, para uma disciplina do meu doutorado na Unifesp (Baixada Santista). É estranho, mas sabe quando você adora um texto, sente que ali tem muito material que pode te interessar, mas ao mesmo tempo tem dificuldade de entrar mais fundo no que o autor quis dizer? 

Posso estar completamente errado, não entendi tudo no texto, mas senti que o conceito de gesto menor tem muito a somar com o que tenho estudado, fotografia contemplativa, meditação e mindfulness. 

Muitas vezes, quase sempre aliás, menos é mais. Sei que isso é muito batido, mas é tão verdade, às vezes diminuir, sair do centro, e ir para a margem, pode parecer algo como se retirar, desistir, mas é o oposto, é ir mais fundo, explorar a experiência de forma concreta. 

Há muitos anos faço a série fotográfica A VIDA ENTRE LINHAS, uma provocação para pensarmos o quanto somos guiados por linhas, de telefone, internet, metrô, ônibus, arquitetura, as boas condutas, roupas alinhadas, e que a vida verdadeira, a vida plena e feliz (mesmo que momentânea) está justamente nas entrelinhas. 

A vida entre linhas


[A vida entre linhas, São Paulo, 2017]

Essa “vida entre linhas” é complexa e obviamente a maioria das pessoas sente muita insatisfação. Talvez a resposta á “vida entre linhas” seja a vida artística. A arte aqui entendida como um fazer, e não um resultado, a traduzir o porvir (Manning, 2019, P.6). Talvez pudéssemos pensar que para sair dessa prisão da “vida entre linhas” precisamos de grandes gestos de ruptura, mas:

“O gesto menor é a força que faz tremer as linhas que compõem os dias, as linhas estruturais e fragmentárias que articulam maneiras outras da experiência se expressar” (Manning, 2019, p.4)

Existe um poder nas pequenas coisas, no simples, no momento, é um poder intenso mesmo que a princípio pareça algo delicado. O gesto menor, eu entendo, não é apenas procurar coisas mais simples, mas se colocar em uma posição mais simples, deixar a posição de agente, e se tornar passagem, ampliar não o gesto, mas a profundidade da experiência:

“Não criamos gestos menores porque eles não são nossos. O menor é percebido por aquilo que produz no campo de experiência”. (Manning, 2019, p.10)

A proposta é deixar de buscar controle, domínio, e buscar harmonia com o ritmo de tempo delicado das coisas menores. Ao ler a palavra experiência não pude deixar de lembrar de Bondía, que tão bem definiu esse conceito: 

“O saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. De fato, a experiência é uma espécie de mediação entre ambos.” (Bondía, 2002)

A experiência e o despertar

Vivemos então nessa “vida entre linhas”, certinha, alinhada, voltada ao grande, ao especial, mas que pode ser extremamente anestésica (anestésis = dormir). Mas só podemos despertar desse torpor com um acontecimento estético (aestésis = despertar), mas no mundo de hoje precisamos de paciência para deixar o controle e assim nos abrirmos à experiência:

“A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço”. (Bondía, 2002)

Então a experiência (estética), que pode nos despertar, é produto do contemplar, do se ater ao pequeno, do ato de viver a vida, do gesto menor que desdobra o momento, expande o tempo.  

"A contemplação, entendida como o ato de persistir-com, de cuidado com um processo, é uma forma mínima de produção. Toma parte nas condições que fazem uma obra desdobrar-se. A contemplação é passiva somente no sentido de que essa participação provoca uma espera, uma paragem, uma escuta, uma simpatia-com. Essa simpatia está envelopada no processo, simpática com a parte indizível da experiência atiçada pelo gesto menor, em afinação com a frágil arte do tempo." (Manning, 2019, pg.9)

Concluindo: Menos é mais

O que entendo de tudo isso é que a liberdade não necessariamente está nos grandes gestos, como o de poder sair nas ruas e poder viajar, mas pode estar também em pequenas coisas, ser livre é ser capaz de desdobrar e aprofundar a experiência das pequenas coisas. 

Liberdade, para mim, é viver artisticamente, ou seja, ter consciência da “vida entre linhas”, e perceber que a vida real está nas entrelinhas, naquelas pequenas coisas que amamos (ler, costurar, pintar, fotografar, etc…), está nas margens, onde estão as coisas pouco exploradas, longe do centro e das grandes coisas. Contemplar o pequeno tem o poder de fazer tremer as linhas que nos prendem. 

Liberdade é poder desdobrar a experiência, viver a vida, viver a arte. Liberdade é caminho, e não fim.

Em termos práticos, como começar fazer os gestos menores? 

Dicas (mas só se você quiser)

Darei algumas dicas baseadas na minha prática de FOTOGRAFIA CONTEMPLATIVA. 

“A Fotografia Contemplativa, (também chamada de Miksang e Mindfulphoto) pode ser entendida como um estado mental aberto, curioso, sem julgamento, concentrado em apenas ver. Antes de uma técnica de fotografia é uma forma de ver o mundo e de viver. É a experiência visual direta, não conceitual, ou seja, a pura percepção.” (http://www.fotografiacontemplativa.com.br/artigos.html)  

  • Primeiramente devemos desenvolver a capacidade de nos encantar com o simples e comum.

  • Cultivar a paciência.

  • Observar com mais calma. 

  • Tentar diferenciar o VER do IMAGINAR (perceber x conceitualizar). 

  • Ter atenção às pequenas atitudes, assim como costumamos ter às “grandes coisas”. 

  • Não esquecer o agora (ao pensar no amanhã). 

  • Cultivar a elegância dos gestos (físicos mesmo), às mãos, às palavras. 

  • A arte, libertadora, não é o quadro na parede, mas sim a maneira de fazer as coisas, a arte é um fazendo, um processo.

  • Busque ver as coisas como elas são AGORA, antes do significado, veja primeiro cores, formas, texturas, luminosidade, e só depois deixe vir as associações, memórias e preocupações. 

Espero ter ajudado um pouco, não a resolver problemas, mas a clarificar questões. 

Texto e fotos: Yuri Bittar

Referências:

Manning, Erin. Proposições para um movimento menor. Tradução André Arias. Moringa Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 10n. 2, jun-dez/2019, p. 11 a 24. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/index.php/moringa/article/view/49811/28984>

BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002, n.19 [cited  2020-04-30], pp.20-28. Disponível em:  <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782002000100003&lng=en&nrm=iso>.